terça-feira, 14 de setembro de 2010

VIOLÊNCIA NA TV, VIOLÊNCIA DA TV: INFLUÊNCIA DAS REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS NA CONFORMAÇÃO IDENTITÁRIA DA POPULAÇÃO DA FAVELA


Este artigo foi escrito em parceria com a professora Doutora Ana Carolina Pessoa Rocha Temer, uma das maiores autoridades em televisão do Brasil, e com sua orientanda Fran Rodrigues que intégra por concurso público a equipe da TV Brasil Central como repórter, a partir de setembro de 2010, uma brilhante colega. Este texto foi apresentado no Congresso Nacional de Comunicação- Intercom, realizado em Caxias do Sul, em setembro de 2010.

Resumo:

O presente artigo discute como a violência urbana é representada pela mídia numa análise que correlaciona as relações entre cidadania, violência e comunicação. Dados apontam o crescimento das desigualdades sociais e também o aumento da violência entre jovens. Diante desse contexto, busca-se desvelar a intrínseca relação entre as imagens de violência e o cenário das comunidades populares.

Palavras-chave: cidadania, televisão e violência

Introdução
Durante toda a história da República no Brasil e do capitalismo no mundo, a mídia tem um papel importante, que desafia a comunidade científica interessada em entender os fenômenos sociais de um determinado momento. Vivemos em um mundo permeado por sinais e signos, em que a comunicação constrói e transforma imagens e realidades. Desde os estudos Aristotélicos acerca da retórica, sabe-se que a comunicação parte de uma intencionalidade. Não neutra, ela tem como objetivo tocar o outro, influenciá-lo, provocar uma mudança, uma reação. (TEMER e NERY, 2009, p. 21).
Em Becker (2009), vemos que os meios de comunicação de massa são sistemas que têm o poder de influenciar sociedades complexas. Para a autora, a fonte de poder desses instrumentos está na ampla capacidade de audiência em termos de expectadores e espaços. Ela acrescenta que “há, sem dúvida, uma intencionalidade condicionada nos discursos midiáticos. Mas, para desvelar seus efeitos de sentidos, o essencial é descrever as estratégias enunciativas e a interação da recepção”. (BECKER, 2009, p. 92).
Num momento em que cresce o número de assassinatos entre jovens e as estatísticas apontam o aprofundamento das desigualdades sociais, surgem inúmeras reflexões, entre elas, a atuação da mídia na configuração das representações da violência urbana. Presente em toda a extensão da programação televisiva, desde jornais, novelas, programas policiais e mesmo na programação infantil, a violência é uma constante no espaço midiático. A variável ‘sangue’ compõe a fórmula dos 3S, com a qual León (2004) define as tônicas do sucesso jornalístico: sangue, sensacionalismo e sexo.
Este trabalho tem como tema central a conformação de representações da violência por intermédio da mídia, enfatizando, sobretudo, a intrínseca relação entre as imagens da violência e o cenário das comunidades populares. Portanto, a proposta deste artigo é compreender que tipo de enunciados a imagem da violência leva para a sociedade, bem como a relação desse discurso midiático com as representações sociais acerca da criminalidade. Em outras palavras, um diálogo sobre as possibilidades de influência da mídia na esfera pública, na formação de identidades coletivas.

Violência: Atentado ao Direito Universal da Vida
Muito presente na história da humanidade, a violência é, ao mesmo tempo, complexa e ambígua. Desde o início da história, o homem assiste e/ou é protagonista de cenas de violência. Num primeiro momento, pelas interações face a face, e a partir do final do século XVIII, com o advento da Revolução Industrial e o surgimento das cidades, a imprensa passa a mediar a relação entre imagens e/ou fatos ligados à violência. Mas afinal, o que é violência?
Não é simples a tarefa de definir a violência. Diversos conceitos têm sido propostos para falar de muitas práticas, hábitos e disciplinas, de tal modo que todo comportamento social poderia ser visto como violento, inclusive o baseado nas práticas educativas, tais como na ideia de violência simbólica proposta por Bourdieu (2001).
Abramovay (2006, p. 15) trata que “a violência é ressignificada segundo tempos, lugares, relações e percepções e não se dá somente em atos e práticas materiais”. Nem sempre a violência se fundamenta em crimes e delitos. Ela permeia nosso cotidiano, nossas mentes e almas na forma de um sentimento de insegurança.
Conceitualmente, o termo violência vem do latim violentia, que remete a vis (força, vigor, emprego de força física, ou recurso do corpo para exercer sua força vital), essa força torna-se violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo assim, carga negativa, ou maléfica. Portanto, “é a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento causado), que vai caracterizar um ato como violento, percepção que varia cultural e historicamente” (Zaluar, 2004, p. 228-229). Chauí (2007) problematiza:
Na verdade, o dicionário resume, sem comentários, a história dos numerosos sentidos que a palavra violência teve e tem na cultura ocidental, desde a antiguidade. Esses múltiplos sentidos poderiam ser resumidos na ideia de que a violência é um ato brutal e antinatural de transgressão e violação da natureza, do direito, da justiça, das leis, dos costumes, do sagrado, das mulheres e dos mais fracos. Quando a relação entre dois ou mais seres se realiza através da força física, psíquica ou moral, dizemos que há violência, identificando-a com a coerção, a coação ou a repressão. Isto, no entanto, é apenas o início das dificuldades, pois diferentes culturas definem de diferentes maneiras a margem que separa o natural e o ilegítimo. Há pluralidade de medidas e critérios para avaliar a própria identificação da violência com a força (p. 120).

Neste sentido, trataremos principalmente da violência como um atentado ao direito à vida, ou seja, agressões ao corpo humano, procurando verificar que tratamento essa violência recebe na mídia, assim como a influência desse arcabouço discursivo na estruturação da sociedade brasileira, ou seja, as implicações simbólicas da representação midiática acerca da violência física.

Comunicação e Violência, uma relação de Mercado
A comunicação é a ação de tornar comum uma ideia, ou ainda, uma ação que não se realiza sobre a matéria, mas sobre o outro (TEMER, 2005, p. 276). Para Sodré (2006) a palavra comunicação recobre três campos semânticos, a veiculação, a vinculação e a cognição. A veiculação no sentido de conferir visibilidade, ou mesmo existência no bios midiático; a vinculação refere-se ao fato de que as informações veiculadas por certo meio de comunicação estão ligadas a determinadas ideias, refletidas na linha editorial, ao sistema organizacional e à determinada sociedade. Já a cognição é o modo como emissor e receptor apreendem uma informação.
Conforme assinala Thompson (2001), as relações entre os indivíduos são alteradas pela informação e conteúdo simbólico trazidos pela mídia. Criam-se novas formas de ação e interação no mundo social, novos tipos de relações sociais e do indivíduo com o outro e consigo. Woodward (2000) corrobora a visão de que os significados produzidos pelas representações da mídia intermediam as interpretações que as pessoas constroem acerca de suas experiências:
Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. Por exemplo, a narrativa das telenovelas e a semiótica da publicidade ajudam a construir certas identidades (p. 18).

A linguagem cria, mais do que reflete a realidade, principalmente por meio da mídia. Ela requalifica a vida social a partir do discurso, em função da tecnologia e do mercado (Sodré, 2003). Fala-se em mundialização mas, na verdade a globalização mostra-se claramente regional, já que os investimentos se concentram em determinadas regiões do mundo. Velocidade e flexibilização são conceitos-chave com a autonomização dos processos financeiros a reboque das grandes empresas.
Neste contexto, nada é radicalmente novo, mas atualizado. O individualismo ativo é substituído pelo passivo, com consenso gerencial, desejo de informação, status e vontade de consumo. A ciência e a tecnologia impõem-se como as últimas grandes utopias do capital. Evolucionismo para um destino global. Financeirização veloz e instável da riqueza que desteritorializa os espaços e mercados nacionais em favor de espaços e mercados mundiais sob o controle de empresas multinacionais.
A hibridização mídia-consumo evidencia-se na forma como o entretenimento avança sobre os demais gêneros de comunicação. É nesse contexto de espetáculo para consumo, que vemos as indústrias culturais transformadas em conglomerados constituídos pela fusão entre negócios, entretenimento e informação, nessa ordem de importância.Tais mudanças na economia resultaram na desregulamentação do capital em todas as áreas, inclusive na comunicação. A concentração e diversificação das indústrias da mídia levaram em última instância à formação de conglomerados de comunicação que possuem grandes interesses numa variedade de indústrias ligadas à informação e a comunicação.
O objetivo do capital é sua reprodução. Nesse aspecto o que garante o lucro quando se fala de comunicação é audiência. Então, a disputa por lucro retira da informação e da comunicação seu potencial de transformação da sociedade. O resumo de quase todos os fatos da vida social em espetáculo tem um porque, chamado audiência, convertida em lucro, que alimenta os grandes monopólios de comunicação. Nas palavras de León (2004), uma relação de consumo:
Sob estes novos parâmetros, a busca da verdade, tão apregoada pela imprensa do Ocidente, vai se transformando em boa intenção que se
dilui diante dos imperativos do mercado, em cujo horizonte não contam cidadãos e cidadãs, mas consumidores e consumidoras. E,
para chegar até eles, a prioridade é conseguir criar produtos padronizados para todos os públicos , a despeito de seus extratos sociais, países ou culturas (p. 407).

Conforme assinala Harvey (2003), Karl Marx observou que a competição capitalista tende sempre ao monopólio. Portanto, não é coincidência a formação dos grandes conglomerados de informação e comunicação. Assim, a mídia toma como parâmetro a produtividade, competitividade, lucratividade e racionalidade Gerencial. Deixa de ser central a informação que contribui para a consolidação da cidadania, se esta não pode gerar dividendos.
É neste contexto que a representação da violência pela mídia ganha cada vez mais espaço, na busca incessante por audiência. A todos estes aspectos do capital, pode-se aduzir ademais os aspectos da comunicação do grotesco, fortemente presentes na cultura nacional. Conforme assinala Sodré (1985):
O ethos da cultura de massa brasileira, tão perto quanto ainda se acha da cultura oral, é fortemente marcado pelas influências escatológicas da tradição popular. O fascínio pelo extraordinário, pela aberração, é evidente nos programas de variedades (...). O grotesco parece ser, até o momento, a categoria estética mais apropriada para a apreensão desse ethos escatológico da cultura de massa nacional. Realmente, o fabuloso, o aberrante, o macabro, o demente - enfim, tudo que à primeira vista se localiza numa ordem inacessível à “normalidade” humana- encaixam-se na estrutura do grotesco (p. 38).

Como construtores privilegiados de representações sociais na contemporaneidade, os meios de comunicação atuam produzindo também representações sobre o crime, a violência e sobre aquelas pessoas envolvidas em suas práticas e coibições. Numa relação, muitas vezes, cinematográfica, entre bandidos e mocinhos. Representações que, constituem-se sob a briga pela audiências, como destaca (Medeiros, 2009, p. 01)
Se a mídia é, atualmente, um fenômeno onipresente no imaginário social, não o seria tanto se não cultivasse a violência como um dos principais ingredientes de sedução e atração. Como se nota, os tradicionais campeões de audiência são justamente os filmes, seriados, novelas e telejornais repletos de explosões, tiros, agressões físicas e verbais, perseguições policiais, enfim, muito sangue, velocidade e ação.
Algumas pesquisas demonstram significativas e positivas mudanças em relação à cobertura jornalística em torno de temas como criminalidade e segurança pública no Brasil, a exemplo das conclusões apresentadas por Ramos e Paiva (2007):
Nos levantamentos, a impressão de que os jornais vêm abandonando os recursos mais ostensivos de apelação e sensacionalismo se confirmou: na pesquisa nacional, em apenas 0,4% dos textos analisados, a matéria sugeria que a restrição dos direitos de criminosos seria uma saída para o problema da violência (...) E apenas 0,3% dos textos sugeriu a possibilidade de que se fizesse justiça com as próprias mãos, sem criticar essa postura (p. 18).

Contudo, no âmbito da produção televisa, a abordagem permanece apelativa, sensacionalista e potencializada pelo poder da imagem, que, em conformidade com o fetiche contemporâneo pelo espetáculo, delineia a chamada Sociedade da Informação, bem como seus fluxos e ritmos de produção.

Poder da Imagem na Sociedade do Espetáculo
As construções estéticas da representação da violência urbana são ancoradas, muitas vezes, na dinamicidade da linguagem audiovisual, que interpelam o receptor pela intensidade e caráter imediato, comungando de uma estética que, longe de optar por uma descrição objetiva e fiel da dinâmica da violência em sua(s) manifestação(s) na realidade social, apresenta-se como um lugar privilegiado de construção de valores, identidades, mediações e sentidos (Bonilla, 1995, p. 58).
A imagem televisiva é formada por três milhões de pontos luminosos por segundo, mas o espectador só pode perceber algumas centenas deles. Para Ramonet (2001) a velocidade dessas imagens é o que mais seduz os espectadores. “Elas fixam o olhar, pelo seu ritmo ofegante e pelo piscar da luz (...) Esta velocidade constitui, portanto, um meio de tornar cativo o olhar e de provocar um efeito de hipnose (p. 55).
Estamos diariamente submetidos a uma pressão visual. Na contemporaneidade, informação e cultura têm um tratamento predominantemente imagético, realçando valores como a instantaneidade e o efêmero. Nossa memória, da mesma forma, torna-se volátil e fragmentada, sedenta por novidades breves e brilhantes, envoltas no papel celofane da televisão, o espelho que reflete realidades recriadas a partir de um sistema próprio de regras, do qual partilham emissores e receptores.
Para Casetti e Chio (1999, p. 263, apud BECKER, 2009, p. 96), a televisão “possui uma linguagem propriamente dita, que recria a realidade a partir de critérios funcionais associados às características técnicas e lingüísticas do aparato, à intencionalidade comunicativa do emissor e ao contexto cultural”.
A TV nos oferece uma produção contínua de visibilidade e de imagens, que funcionam para o sujeito como oferta incessante de objetos para o desejo, e até uma suposição de conhecimento sobre esse desejo. Essa suposta onisciência do ‘outro’ nos dispensa o trabalho do pensamento acerca de nossos embates com o real, da penosa tarefa de simbolizar, esse trabalho psíquico que nos constitui como sujeitos do desejo. Ficamos perigosamente ancorados no eu imaginário e submetidos à violência própria das formações imaginárias.
Os dispositivos tecnológicos de imagem constituem nosso imaginário, nos oferecem parâmetros estéticos, reorganizam a experiência no mundo, a emoção e a sensibilidade. Funcionam como próteses dos nossos sentidos, agora artificialmente modelados e desligados do ‘outro’. Nas sociedades de massa, a televisão faz-se o ‘outro’ ao qual referem-se Bucci e Kelh (2004). Significação e imagem se confundem, então. A televisão substitui o trabalho do imaginário e do significante, fazendo com que o contato com o outro não passe pela reflexão, por sua simbolização. Dessa forma, todo contato há de se realizar de modo ameaçador e violento.
Ainda segundo os autores, o fluxo de imagem paralisa momentaneamente o pensamento, incita a irreflexão, o que condiz com a noção de espetáculo encontrada em Kellner (2006), que o define como um conjunto de mecanismos orientados para a persuasão ideológica e econômica embasada no lazer e no entretenimento irrefletido que visam à alienação e passividade do público.
Receptivo às imagens o público estaria também aberto ao recebimento dos enunciados a elas vinculados. Deste modo, segundo Kehl (2004, p. 13), “o gozo e a satisfação se tornaram imperativos sociais e morais". A Televisão se formata também como meio de produção de sentido que prescinde o pensamento, um espelho no qual, em alguma medida, julgamos ver refletida nossa imagem e a do mundo que nos cerca.
Kellner (2006) ressalta, contudo, que a cultura da mídia não é determinante sobre o indivíduo, até mesmo porque isso seria ignorar as capacidades cognitivas, os filtros interpretativos que os indivíduos adquirem ou mesmo as outras influências que recebem ao longo da vida.
De acordo com Thompson, a valorização do papel da televisão na socialização tem gerado entendimentos equivocados, sobre os quais esclarece:
Dizer que a apropriação das mensagens da mídia se tornou um meio de autoformação no mundo moderno não é dizer que é o único meio: claramente não é. Há muitas outras formas de interação social, como a existentes entre pais e filhos, entre professores e alunos, entre pares, que continuarão a desempenhar um papel fundamental na formação pessoal e social. Os primeiros processos de socialização na família e na escola são, de muitas maneiras, decisivos para subseqüente desenvolvimento do indivíduo e de sua autoconsciência (Thompson, 2007, p. 46).

Conforme Kellner (2001), ao passo em que a mídia tenta angariar, junto a seu público, adeptos dos modelos hegemônicos (de consumo, de pensamento, de comportamento, etc), “o público pode resistir aos significados e mensagens dominantes, criar sua própria leitura e seu próprio modo de apropriar-se” (p.11).
Para Ronsini (2000), “Resistência e passividade andam de mãos dadas” (p. 65). O entendimento de que é possível haver “resistência” às mensagens midiáticas está relacionado com o conceito de hegemonia de Antonio Gramsci, adotado pelos estudos culturais – aos quais os estudos de recepção se integram – e fundamentais para seu desenvolvimento.
A hegemonia nos permite pensar a dominação como um processo entre sujeitos onde o dominador intenta não esmagar, mas seduzir o dominado, e o dominado entra no jogo porque parte dos seus próprios interesses [...].Essa dominação tem que ser refeita continuamente, tanto pelo lado do dominador como pelo do dominado (Barbero, 2001, p. 99).

A sociedade assiste a um duplo espetáculo da mídia e do Estado que dramatizam a criminalidade e excitam a demanda por um endurecimento penal, desviando a atenção, com o espetáculo da violência, dos problemas estruturais dos quais derivam a criminalidade, tais como a distribuição desigual da riqueza, a marginalização e a exclusão social que são criadas pelas opções políticas e econômicas advindas da escolha de um modelo econômico, o neoliberal (Bentes, 1994, p. 45). Arendt vai mais longe. Para a autora:
A agressão que emerge a partir dos atos violentos sinaliza a necessidade de um mundo que promova a eqüidade de condições, o que implica em relações de poder. A relação entre poder e violência não é de similaridade, mas de oposição, uma vez que onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada ao seu próprio curso, ela conduz à desaparição do poder. Isto implica ser incorreto pensar o oposto da violência como a não-violência; falar de um poder não-violento é de fato redundante. A violência pode destruir o poder; ela é absolutamente incapaz de criá-lo (ARENDT, 2001, p. 44).

Trata-se, então, de uma lógica circular: a sociedade termina refém das estratégias adotadas pela mídia para a exploração do sentimento de insegurança pública. Entende-se, portanto, que, toda esta problemática associada à representação midiática da violência constitui um episódio de luta de ordem política para persuadir a maioria social de algo que ela não parece estar de todo convencida. Cabe ressaltar, porém, que não se quer condenar os receptores que preferem o grotesco, ou a comunicação da violência. Como afirma Eco (2005, p. 58):
A diferença de nível entre os vários produtos não constitui a priori uma diferença de valor, mas uma diferença da relação fruitiva, na qual cada um de nós alternadamente se coloca. (...) Cada um de nós pode ser um e outro, em diferentes momentos de um mesmo dia, num caso, buscando uma excitação de tipo altamente especializada, no outro, uma forma de entretenimento capaz de veicular uma categoria de valores específica.

Comunicação da violência para a cidadania?
Entende-se cidadania como a forma de participação de um indivíduo na sociedade. Conceito que para Carvalho (2002) seria pleno desde que o indivíduo tivesse acesso aos direitos civis, políticos e sociais. Entre as garantias, encontramos nos direitos civis o direito à propriedade privada, nos direitos políticos o poder de escolher representantes, e entre os direitos sociais fatores como acesso à educação, saúde e empregos formais (com carteira assinada).
Consoante a isso, em Mattelart (1999), vemos uma pertinente crítica ao termo “Sociedade da Informação”, comumente utilizado para designar a emergência dos fluxos contemporâneos de informações:
A sociedade da informação só pode existir sob a condição de troca sem barreiras. Ela é por definição incompatível com o embargo ou com a prática do segredo, com as desigualdades de acesso à informação e sua transformação em mercadoria (p. 66).

Segundo dados atuais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aproximadamente 10% da população têm como renda familiar algo em torno de oito mil reais por mês. Os 90% restantes foram assim divididos: 50% das famílias ganham até mil e oitocentos reais por mês e 40% da população ganha entre mil e oitocentos e oito mil reais por mês. São dados que revelam a forte concentração de renda no país e também profundas desigualdades sociais. Nesse quadro, a busca por direitos à educação, saúde, trabalho e propriedade ainda deveriam ser fundamentais.
A isso somamos a pesquisa da Unesco, veiculada pelo jornal Estado de São Paulo em março de 2010, que revelou Goiânia entre as dez cidades mais desiguais do mundo, ficando atrás apenas das cidades da África do Sul. E é no Brasil a cidade onde se verifica maior desigualdade social. A frota de carros mais novos do Brasil e talvez entre as mais caras convive com um dos piores serviços de transporte público.
O relatório baseia suas conclusões no coeficiente Gini - cujos indicadores medem a concentração de renda de um país. Na avaliação do coordenador do relatório e diretor do Centro de Estudos e Monitoramentos das Cidades do Programa da Onu para os Assentamentos Humanos (Onu-Habitat), o mexicano Eduardo Lopez Moreno, existe vínculo direto entre desigualdade e criminalidade. Mais do que custos sociais, o abismo entre ricos e pobres também provoca prejuízos econômicos. "Estatisticamente, existe sim um vínculo. É muito possível que a cidade mais desigual gere muito mais facilmente distúrbios e problemas sociais. As autoridades desses países vão deslocar recursos que deveriam ir para investimentos para conter esses movimentos sociais. O custo social acaba se traduzindo em custo econômico", afirmou Moreno (ESTADÃO, 2010, p. 01).

Diante deste quadro, entende-se que a violência é também fruto da não consolidação da cidadania, ou seja, da falta de oportunidades, ou da desigual chance de acesso dos jovens à educação formal e até mesmo uma consulta médica ou a um emprego formal. Ou seja, a busca pela cidadania seria, então, um objetivo real dos indivíduos de uma nação e esta se manifestaria nos inúmeros movimentos sociais e perpassaria a mídia, enquanto interface entre uma realidade específica e toda a sociedade.
No contexto apresentado, estudos sobre a recepção das informações da violência por jovens em conflito com a lei se tornam essenciais diante do inegável crescimento da criminalidade no Brasil. Muitas dessas estatísticas do conflito com a lei têm como protagonistas menores, seja como vítimas, seja como agentes. A necessidade existe, sobretudo, quando a espetacularização da violência, ao invés de despertar uma crítica, provoca a banalização e o crescimento do germe de um conformismo desencantado.
De um modo geral, pode-se dizer que o aumento da violência foi acompanhado, nesta década, não somente pela ênfase na cobertura de seus episódios, mas também por um intenso debate sobre o excesso da tematização da violência. No centro deste debate de mobilização nacional sobre o tema, estão as interpretações das cenas de uma violência real e cotidiana transmitidas pela mídia.
A partir dessa transmissão e interpretação sem precedentes da violência urbana, podemos questionar que tipo de ideologias estão presentes no discurso midiático acerca da violência e, ainda, como isso influencia a formação das identidades dos sujeitos envolvidos. Percebemos, nesse sentido, três importantes categorias de análise: Os sujeitos que cometem a violência, os que a ela estão (ou se sentem) vulneráveis e, ainda, como importa salientar neste artigo, os indivíduos que estão no centro dessa tensão social, ou seja, aqueles que convivem diretamente com o estereótipo da violência oriundo da cobertura midiática.
O estereótipo da violência
Freire Filho (2005) define estereótipos como “construções simbólicas enviesadas, infensas à ponderação racional e resistentes à mudança social” (p. 47). Atuam como formas de imposição de sentido e ordem ao mundo social, impedindo a flexibilidade de pensamento em prol da reprodução estática das relações de poder e exploração. O autor acrescenta que ao disseminar essas representações inadequadas, os meios de comunicação constituem um problema para o processo democrático.
Ramos e Paiva (2007) afirmam que “o noticiário sobre crimes é um dos poucos espaços nos jornais que registram o cotidiano das áreas pobres, onde os índices de homicídio são muito mais altos que os de bairros nobres” (p. 82). Nessa mesma pesquisa, as autoras relatam que a maioria dos profissionais de comunicação admite a responsabilidade de seus veículos na caracterização dos territórios populares como espaços exclusivos de violência. No contexto jornalístico, raramente as comunidades populares são desvinculadas de assuntos como tráfico de drogas, criminalidade e violência.
Justificam as deficiências da cobertura sob a alegação de que existe uma recepção negativa por parte das comunidades pobres. Mediante esse impasse, Ramos e Paiva (idem) questionam: “será que os repórteres estão limitando a sua presença nas favelas ao acompanhamento de ações policiais por causa da hostilidade da população ou passaram a encontrar uma recepção hostil por só acompanharem as ações policiais?”
Ao retratar favelas e periferias apenas como cenários da violência, os meios de comunicação contribuem para a disseminação de um estereótipo que criminaliza a pobreza e interfere na conformação social das representações identidárias dos indivíduos que vivenciam o cotidiano das favelas e periferias.
Como argumenta Thompson (2001), com o advento da globalização e a transnacionalização das economias com trocas de informações e mercadorias em nível global, a comunicação passa a interferir de maneira mais forte na cognição, ou seja, na maneira como os seres humanos percebem o mundo. A mídia torna-se num quarto lugar de vida, o bios midiático diante da tecnocultura, como expõe Sodré. O que tanto Sodré (2006) como Thompson (2001) apontam é que a mídia, interface entre uma realidade específica e a sociedade, atua produzindo a percepção da realidade que o receptor forma do mundo.
No julgamento coletivo e, por vezes, mesmo na esfera privada, a figura do chamado ‘favelado’ ou ‘suburbano’ é associada às dinâmicas do crime e da violência, como se fizessem parte do cotidiano de todos que se enquadram nessa categoria. Da mesma forma, as comunidades pobres, retratadas monotematicamente como espaços de criminalidade e barbárie, ficam condicionadas ao estereótipo de ambiente escuso e perigoso, imagem muito aquém da pluralidade de experiências que os moradores, também plurais, vivenciam nessas comunidades.
Acerca da inter-relação entre forças de controle social e a mídia, Freire Filho (2205) reflete:
Os meios de comunicação de massa são a grande fonte de difusão e legitimação dos rótulos, colaborando decisivamente, deste modo, para a disseminação de pânicos morais (...) A criação do pânico moral fornece oportunidade preciosa para os partidários de um universo simbólico moral forjarem um universo moral antagônico, atacá-lo, e redefinirem, a partir daí, as fronteiras entre o moralmente desejável e indesejável (p. 24).

É importante pontuar que, mediante as reivindicações de organizações populares por uma representação mais próxima da realidade das favelas e periferias, as mídias tradicionais perceberam nessas um importante nicho que vem sendo fortemente trabalhado. Hamburger (2007) relata que “a partir dos anos 90, diversas realizações televisivas e cinematográficas desencadearam uma sucessão de proposições que reelaboraram o lugar das periferias e favelas no universo virtual do que é visível, locus privilegiado da sociedade contemporânea”.
Na programação da última década da Rede Globo, maior emissora comercial da televisão brasileira, são encontrados vários exemplos, entre séries e quadros: Cidades dos Homens, Minha Periferia, Antônia, Central de Periferia, Brasil Legal etc. Nesses produtos midiáticos, revela-se uma nova figura e um novo ambiente: o indivíduo pobre e honesto, desvinculado do crime; uma comunidade onde, em que pese a existência dos dilemas com a violência, também é partícipe da arte, do lúdico, do riso e de outras esferas comuns à vida. O que se torna curioso, contudo, é a distância com que esse tipo de programa e os telejornais representam o mesmo ambiente e sujeitos sociais.
Em que pese a existência dos filmes, programas e séries que iniciam uma representação positiva da periferia e seus moradores, no âmbito jornalístico permanece exclusivamente como o retrato do crime, do mal e da necessidade do acirramento de medidas punitivas.
Considerações finais
Na atualidade, a mídia torna-se elemento constitutivo da identidade do receptor, processo que influencia a cultura de diversos povos e, como nos importa nesse artigo, até mesmo na percepção que o indivíduo constrói sobre si mesmo. Como é uma interface entre a sociedade e os acontecimentos, elementos e processos sociais, é também responsável pela cidadania, ou seja, pelo relacionamento dos cidadãos com o Estado. Devido à influência da mídia nos processos sociais, seria natural percebê-la como esfera pública, espaço fundamental para a discussão dos temas da sociedade civil referentes à consolidação da cidadania no Brasil.
Como já destacava Habermas (2003) o desenvolvimento da mídia é parte integral da formação das sociedades modernas. Segundo o autor, a circulação de matérias impressas, nos primórdios da Europa Moderna, teve um papel crucial na transição do absolutismo para os regimes liberais e democráticos, e a articulação da opinião pública, por meio da mídia, foi de vital importância para a vida democrática. No entanto, com a apropriação capitalista dos meios de comunicação, os objetivos comerciais impediram o debate crítico-racional na mídia, como espaço para a esfera pública.
Passa-se do interesse público ao interesse comercial, à busca pelo lucro, ou, mais indiretamente, na defesa dos valores morais e sociais que condizem com as camadas economicamente privilegiadas, em detrimento de uma população que, sob esse prisma, pode ser mal representada e arbitrariamente associada a qualquer tipo de demérito.
A mídia presta um desserviço à sociedade quando criminaliza o cidadão de bem em função de sua origem social, influenciando negativamente na imagem que a sociedade produz acerca do indivíduo pobre e sua localidade. Não cumpre sua função primeira de provocar a mudança e o desenvolvimento quando, ao invés de denunciar os problemas estruturais, tais como o desemprego ou subemprego urbano, contribui para a manutenção do status quo sugerindo que a insegurança deve ser combatida com uma ação mais violenta de uma polícia cada vez mais armada. Sabe-se que a violência é fruto, também, de uma forte desigualdade social, que precisa ser combatida com reformas sociais de inclusão do indivíduo como cidadão , reformas essas, concebidas em longo prazo e quiçá a mudança do vigente sistema econômico de exclusão.

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